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27/01/2023

A Educação de Manu



Por Henrique Maynart

“Chego em casa em vinte minutos”, respondeu por volta das 9 horas e 20 minutos daquela sexta-feira (13) para uma conversa virtual pelo Meet, o Google segue mandando e desmandando nas interações humanas com ou sem pandemia.

Conectados para valer às 10 horas e 11 minutos, Manu aparece na tela prensada em parede de azulejos brancos no estilo “casa de vó”, seguidas de reclamações mútuas sobre o sinal da internet e o calor satânico de Aracaju desabando sobre os corpos em pleno janeiro. Era uma sexta-feira 13.

Manuela Rodrigues Santos completou 45 anos no último Natal. Dividir a data de nascimento com Jesus de Nazaré nunca foi exatamente uma vantagem. “Comer ceia de Natal no aniversário sempre foi uma realidade pra mim, ter um presente ao invés de dois, essas coisas que tive que me acostumar”.

ADOLESCÊNCIA PROIBIDA

De Jerusalém a Poço Verde, a criança mais velha da família percebeu cedo demais suas “jabuticabas”. Assim como o município do Centro-Sul sergipano que faz divisa com oito cidades entre Sergipe e Bahia, seu corpo era encruzilhada entre a identidade de gênero e o sexo biológico.

A família de agricultores rurais, em fuga drástica das estatísticas de um país  profundamente LGBTfóbico, acolheu ao invés de expulsar, protegeu ao invés de constranger, recluiu ao invés de repelir.


Se a escola violentava, a família lambia as feridas e passava a chave no trinco. “A vivência da escola sempre foi muito violenta, eu sofria muito, era muito discriminada naquele espaço, lida como um menino gay afeminado. Minha família nunca me recriminou, sempre me protegeu. Diferentes dos meus irmãos eu não poderia sair de casa na adolescência. Ficava revoltada, mas depois entendi que eles estavam me protegendo. Em casa, estava segura”.

TRANSLITERATA E LITERATA TRANS

Para suportar o cárcere de uma adolescência proibida, a literatura de Caio Fernando Abreu, Virgínia Wolf e Clarice Lispector foi uma linha de defesa. “A Literatura foi a minha primeira forma de travestilidade, ela me acompanha até hoje”.

A racionalidade capricorniana sempre foi o forte de Manu. Sua transição de gênero deveria ser construída aos poucos, no alicerce da estabilidade financeira, driblando forte a marginalização e a prostituição compulsórias, impostas goela abaixo à população trans. Ela saiu de Poço Verde em 1996 para cursar Letras Português - Francês na UFS e morar em Aracaju.


Comecei a minha transição exatamente após a Graduação. Já dava aula na rede pública e privada, tinha como me organizar financeiramente. Lembro de uma vez que cheguei em Poço Verde com cabelo vermelho e meu pai se assustou: “o que é isso, menina?” E eu respondi” é porque ainda não dá pra fazer plástica né, então a gente começa pelo cabelo”.

EDUCADORA SALTO 15

De volta à sala de aula, desta vez como professora, o assédio e as micro violências não cessariam assim tão rápido. Certa vez em certa universidade privada, foi chamada atenção pelo coordenador do curso a não usar peças de roupa tão “chamativas” para “não assustar os alunos”.

A resposta veio no dia seguinte em 15 centímetros de valentia. “Meti um salto 15 e subi as escadarias da faculdade já no outro dia. Eu tinha certeza que se baixasse a cabeça naquele momento, seria o fim. Reforcei minha performance naquele momento e depois deste dia ninguém mais me falou nada. Poderia ter sido demitida, mas não fui”.

Todo o processo transsexualizador veio com o tempo, e sua família transicionou junto com ela. “Com a mudança do nome social, a hormonização, toda a família teve tempo de transicionar comigo, o que foi muito bom.”

O Mestrado em Sociologia veio em 2006 em Sociologia do Corpo e Sociologia da Literatura, pelo Programa de Pós-Graduação da UFS, quando estudou a representação sexual em Diadorim, personagem de “Grande Sertão Veredas” de Guimarães Rosa.

A VIDA EM SÃO CRISTÓVÃO

Prestando concurso para o Instituto Federal, ela toma posse em 2011 lotada no Campus de Nossa Senhora da Glória. Transferida para o Campus São Cristóvão em 2014, a professora de Gramática, Literatura e Produção de Texto se depara com uma sala de aula repleta de jovens remanescentes de comunidades rurais, um simulacro de sua infância. Alguns gatilhos são inevitáveis, mas a experiência tem sido bastante positiva.

Todo começo de período letivo, na apresentação dos professores para pais e alunos, dá aquele frio na barriga, aquele nervoso. Mas nunca sofri uma violência sequer, a relação com os alunos e alunas é ótima. Sou muito querida.”



VIOLÊNCIAS, AFETOS E RESISTÊNCIAS

De acordo com dados da Trans Gender Europe, o Brasil é o país que mais mata transsexuais e travestis no mundo, seguido pelo México. Em paradoxo, os relatórios anuais do Redtube apontam o país como maior consumidor de pornografia trans do planeta. “Nossos corpos, quando não são hiperssexualidados, são repelidos. Não temos direito à plenitude do afeto, a transfobia estrutural segue com suas barreiras”, destaca.

Apesar de sempre ter desviado da prostituição compulsória e construir uma carreira focada na Educação, as abordagens na rua não são incomuns. “Você está na rua resolvendo alguma coisa e tem gente lhe perguntando o preço do programa, porque o seu corpo só cabe se for neste papel de subalternidade. Não é uma condenação à prostituição, mas a crítica a esta atividade como única possível para a população trans”.  

Não obstante vitórias e posições importantes, como a garantia de nome social em instituições públicas, o avanço de ideias conservadoras sob o último desgoverno Bolsonaro constituem uma ameaça constante. “Para nós, ir ao banheiro é um problema, porque tem um segmento da sociedade que não reconhece e não respeita a nossa identidade. Uma coisa tão elementar como fazer xixi, para nós é um problema. Quantos cartórios se recusam a encaminhar o nome social, quantos professores e professoras não respeitam o nome social dos alunos e alunas Brasil afora porque sua confissão religiosa diz negar?”.

ESCUTA E TRANSCESTRALIDADE

Afastada desde 2019 para um doutoramento na Universidade de Brasília (UNB), Manu segue “casada com a tese” até a sua defesa ainda no início do ano. Morando sozinha no décimo andar de um apartamento em Brasília em plena pandemia de Covid 19, seu doutoramento em Literatura de Autorias Trans constituiu mais um caminho solitário. “Parecia a Rapunzel, só faltava jogar as tranças (risos)”.

De volta ao IFS em meados de março de 2023, a doutora Manu amplia a bagagem da plataforma Lattes para fortalecer seu lugar na Educação sergipana junto aos movimentos sociais. “Nós estamos onde estamos hoje porque muitas de nós vieram antes. Quantas pessoas  não tiveram a oportunidade que eu tenho agora? É necessário construir para além de locais de fala, locais de escuta. Fortalecer a escuta, o fortalecimento da sociedade organizada na construção de uma transcestralidade.”

Após uma hora e dez minutos de conversa mediados pelo Google Meet, a proza se encerra apressada pelas demandas do almoço e preparativos do ato unitário contra o fascismo, o terrorismo e a democracia que ocorrera naquela mesma tarde, em Aracaju-SE. Sobre encruzilhadas, desafios e transliteraturas, as reivindicações dos movimentos populares devem seguir entrecortadas pelas vivências e demandas da comunidade LBGTQIAP+.


 


 


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